terça-feira, 8 de março de 2016

HOMEM SEM VERSO, SUBMETIDO À MÁQUINA, DE CABEÇA BAIXA



Homem sem verso, submetido à maquina, de cabeça baixa. 

ao léu
pensava em cores berrantes
mas permanecia ante a máquina
como quem morreu

e surgia palavra nova
nunca antes vista, mas pensada
investigada nas minúcias

mas logo abandonada
ante a velha máquina
(trambolho e senhora)

não fosse a máquina
algoz de seu pensamento abstrato
não seria cerceado por objeto lógico

cujo som
(mescla de som e curtíssimos silêncios)
fosse vírus não seria tão denso

cujo som somava-se a outros,
fractais de sua morte anunciada
todo começo, renitente, infinito

mas à sua tez simples
ninguém o imaginava torpe
apenas à máquina

Gerundino assim
homem composto
(tanto verbo, verve, carne)
era vulcão implodido

soubesse a máquina
que nos sonhos mais ternos
(final de filme piegas)
lá estava ela (sem sorrir)

e nos momentos de pranto
(desejo arrancado do peito)
ela era o açoite do carrasco
o veneno do amante
a pólvora, o gancho

relógio intermitente
e sua face sisuda,
pálida, sincera

Gerundino lhe contava as horas
(quebra de mecanismo, pressão arterial, câncer, falta de vergonha na cara, fome)
mas sua algoz morreria depois dele

antes da morte e do sono
Gerundino mentalizava telas de cor
sonhava-se moderno

mas abria os olhos
e nunca mais dormia

em sua noite eterna
pensava em cores claras
tentando uma fuga, um refúgio um abraço

mas viria o dia seguinte
impertinente, quase imoral

pausa na calma hipócrita
Gerundino dormia

dormindo de olhos cerrados
sem o peso dos óculos
sem a roupa carnuda
magro, pequeno, poucos pelos
(fóssil próprio de homem futuro)
 parecia sorrir

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

FÉRIAS DE JULHO

(Instruções: Tocar o vídeo abaixo, The Swan, de Camille Saint-Saëns. Começar a leitura).



Noite (esta será a primeira imagem posta sobre a história. Surgirão outras. Esteja habituado à invenção). Era o último dia de carnaval. A cidade fedia como um banheiro público. Em sua memória, moldada a álcool e cocaína, tinha sido uma festa feliz, mas Madalena sabia que não podia esperar muito do que se seguiria, porque seria preciso reaprender as pequenas coisas e ainda tecer as grandes, porque havia dentro dela uma terrível vontade de voltar atrás ou de que tudo aquilo não passasse de uma viagem errada de ácido, a testa aberta de Paulo, ter morrido assim, olhos esbugalhados, moldada na cara a crença que ela não seria capaz disso, “abaixa essa arma, Madalena” enquanto ela pensava nas férias de julho, ser publicamente tratada como lixo, ‘abaixa essa arma o caralho, seu puto’, ela respondeu em pensamento, as mãos dele tremendo de espanto – parece que o tiro pegou de raspão o dedo do meio, detalhe observado pelo legista – e ela perfeitamente sóbria, “lembra das férias de Julho?”, foi tudo o que conseguiu falar, ‘congelada assim uma expressão tão terrível, ele se lembrou’, ela sorriu. Mas hoje era quarta feira de cinzas. Cheiro de mijo. Perambulava pelas ruas como uma barata de Clarice, finalmente chorava, não por ele, mas porque estava louca demais para desconsiderar a culpa, o medo do que haveria de vir, estava triste porque estava fraca. Chegou em casa quase ao amanhecer. Resolveu lavas as vasilhas da pia. Detergente diluído n’água. Ela esfregava talheres de olhos fechados (suas mãos dançavam sobre os pratos? As panelas? Ainda era carnaval?). “Madalena Maria do Carmo”. Gotas de lágrima e pavor. Pancadas secas na porta. “Madalena Maria do Carmo, abra essa porta”. Mais pancadas, um pouco mais rápidos os intervalos entre uma e outra. Era bonito observar o padedê das duas mãos, indo e vindo sem pressa, percorrendo as panelas mais sujas. Cheiro de comida velha. Agora eram ombros e pés que se jogavam à porta. ‘É tudo música’, pensou ela, antes mesmo que um barulho mais retumbante emudecesse seus pensamentos. Os olhos permaneceram cerrados. “A senhora está presa”.